quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Criaturas Amorfas - Cap. 1 - A Fractalidade da Morte

Criaturas Amorfas

Parte I

...Até que a morte nos reúna


***
Cap. 1 - A Fractalidade da Morte

O ribombar das ondas contra o paredão ecoavam um grito de acusação que só Jaime poderia entender. Não seria pra mais; Jaime era (até aquele momento) o único que sabia do corpo dentro da casa, na rua de trás. Elas vinham e voltavam, respiravam e gritavam, tomando fôlego para uma nova acusação; e a cada ataque à parede da calçada Jaime fechava os olhos e cerrava os dentes, ensaiava um semblante sério, mas sempre saía escapando um sorriso nervoso. Seu corpo tremia, mas de emoção. Suas mãos ficavam fechadas ao bolso da calça de linho, mas para esconder as manchas de sangue nas unhas.
Era uma calça de linho cor cinza claro, alinhada no cós, e uma camisa branca de gola grande com estreitas e espaçadas listras de um marrom escuro, combinando com os sapatos. Traje perfeito para Jaime: alto, branco, magérrimo, de cabelos curtos negros e profundas expressões no rosto afilado, envelhecendo-o mais do que aparentava. Hoje as expressões estão mais profundas do que de costume. Brigando contra si próprio; lutando contra o titã que rasga as entranhas daquele que peca, mas não se arrepende. Socialmente ele queria chorar. Hoje não. Hoje ele a matou e só consegue ficar eufórico; não quer admitir, porém não consegue não admitir. Dominar a vida e a morte é a droga mais poderosa que a razão e a criatividade podem inventar.
“Quem diria”, pensou alto. “Aqui acontece de tudo mesmo”. Silenciou a mente até passar por uns turistas que contemplavam o ataque das ondas, como se pudessem ouvir pensamentos. “Em vez de ficar aqui vendo o mar, com toda essa brisa e com tantos coqueiros, eu fico matando gente por aí”. Já estava chegando no final do calçadão, praia de Tambaú, quando os pensamentos do coqueiro, unidos àquela paranóia que só quem mata pode ter, o fez parar, comprar um coco verde e gelado, e sentar na mureta que separa o mar indignado. “Preciso agir como uma pessoa normal”. Sugou a água de coco pelo canudinho. “Mas eu sou normal. E se eu for daqui, eu não estaria bebendo isso. Então eu não preciso agir como uma pessoa normal, e sim como um turista”. Para Jaime as coisas estavam passando rápido demais. Decidiu ficar sentado ali, olhando as pessoas e absorvendo os últimos acontecimentos, conformado com a falta de culpa que deveria estar sentindo. Decidiu observar as que passavam à sua frente, imaginando como seria se fosse com elas. “Essa daria uma trabalhão”, para a senhora gorda, de cabelos amarelos e vestida com um lençol, achando que era um vestido. “Essa aí teria que tomar banho antes de morrer”, para a hippie que vendia brincos no calçadão. Soltou uma gargalhada, a primeira expressão vocal desde o “morre puta” de uma hora atrás.
Virou para o mar e ficou encarando as ondas. Aqui em Tambaú elas têm muito mais poder, pois a ponta da costa fica avançada para o mar. Estava agitado, e o mar também. Pequenas gotículas acertavam a face de Jaime, quando as ondas se chocavam contra o gasto paredão. Os pequenos barcos pescadores sacolejavam, atracados num píer que invadia o mar e a escuridão de uma noite quase sem lua. O mar sabia, ele tinha noção disso; e as ondas que não conseguindo acerta-lo cuspiam em seu rosto. A luz da lamparina do pequeno pescador amarelo à sua frente hipnotizava, e ali Jaime começou a realmente entender o que estava passando na sua vida.
Não tem nada a ver com consciência, ou certo e errado; também não se relaciona com o subconsciente da psicanálise e nem com a trilha dos pensamentos da filosofia. Trata-se da animalidade que todos nós carregamos conosco, e quando vamos exprimi-la. Qualquer um, em alguns dias de vida, sente uma vontade incontrolável de cometer o mal, seja com alguém, com algo ou até consigo mesmo. A questão está em fazer ou não fazer, em libertar ou não o titã comedor de entranhas. Mas agora o devaneio pára, porque o celular de Jaime começa a tocar.
- Alô?
- Jaime?
- Oi...
- Sou eu, meu amor.
Silêncio por fração de segundo. Jaime era casado há dois anos, e os últimos acontecimentos o haviam esquecido disso.
- Diga.
- Onde você está?
- Na praia. Em Tambaú.
- Na praia? Você está bem?
Ele nunca gostou de praia, e o fato de estar em Tambaú às dez da noite era estranho. Ele não é turista, ele é normal.
- Nunca estive tão bem. E você? Não estava na casa de uma das suas amigas?
- Estava. Isso foi há duas horas, e já são dez da noite. Que horas você chega? Eu trouxe lasanha da casa da Lica.
- Já, já eu to aí. Beijo.
- Beijo.
Jaime se levantou, respirou fundo, foi até um táxi parado em frente ao Hotel Tambaú, e dirigiu-se até o seu escritório, no centro de João Pessoa, para pegar o seu carro e ir para casa. Hoje ele iria comemorar muito com sua esposa, seu cachorro e sua garrafa de vinho italiano. Não é todo dia que mata uma pessoa.

Criaturas Amorfas

Criaturas Amorfas é o nome de um projeto literário elaborado por mim, Rafael Cunha, e Geraldo Borges. Assim como a música "Isso podia ser um desabafo", Criaturas Amorfas é escrita em etapas, em capítulos, intercalando os autores. Muitas vezes um capítulo é escrito com o anterior ainda em fase de construção.Cada autor não sabe o que o outro escreveu até que o capítulo esteja pronto. Boa leitura, e não deixe de postar sua opinião!