quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Criaturas Amorfas - Cap. 2 - Infausto

Cap. 2 - Infausto

         Chovia como o diabo lá fora.
            Gonzo permanecia estático, absorto em seus próprios pensamentos. O pouco da lua que as nuvens não encobriam iluminava desinteressadamente o lugar. Sentou-se na grama e fitou o nada por um tempo razoável. Tinha a sua habitual garrafa de bourbon, pela metade. A chuva não demonstrou piedade, castigou-o com severidade. Gonzo sorvia o borboun como se sua vida dependesse dele, era necessário extingui-lo. Não deu tento para chuva, para lua, ou para qualquer outro fenômeno natural. Queria terminar aquela garrafa e morrer ali, bêbado e sem sentidos. Queria simplesmente deixar de existir. Queria abrir os braços para a Dona Morte e sentir seus afago e beijo. O vazio eterno, o fim, o prêmio. Queria sentir o alívio do fim. Estava cansado, molhado, morto. Queria descansar, tinha esse direito. Desejava o fim, desejava morrer.
            Mas não podia, e, infelizmente, eu sabia por quê.
            Andei por aquele caminho mal iluminado, pisoteando a grama do jardim. A noite estava muito escura, a lua e as estrelas não faziam sentido naquele ambiente desprovido de vida. O barulho era imenso, eu participava do castigo também. Tudo parecia desolado e deslocado. Ao me aproximar Gonzo não esboçou reação, sondou um vazio desconhecido e sorveu mais um gole. Abri a boca, mas o som não saiu. Não sabia o que dizer. Não havia o que dizer. Nada faria diferença. A lua permaneceria lá. A chuva, a grama, a dor. Tudo permaneceria lá. Seus olhos estavam vermelhos por causa da bebida e, provavelmente, por causa das lágrimas. Não iria morrer, não havia sorriso em seu rosto. O silêncio entre nós era quase palpável. A chuva não dava trégua. Senti-me impotente, fitamo-nos mudos por instantes. Por algum momento o satélite se mostrou por completo, deu a sensação que iluminava apenas nós, ninguém mais. A lua que iluminava os desgraçados. Por fim, mais morto do que vivo, Gonzo esboçou um sorriso amorfo e quebrou o silêncio:
                - Beba deste bourbon. – A lua desaparecera.
            - Não estou a fim. Obrigado.
                - Tudo bem.
            O silêncio reinou triunfante por um tempo.
            - Deveria ir para casa.
                - Incomodo aqui?
                - Não, de forma alguma.
                - Mas vou assim mesmo, deve ser melhor...
                - Esqueça Gonzo! Fique.
                - Não quero tua piedade. – O cheiro do borboun penetrou-me como uma faca. – Primeiro me expulsa, depois me manda ficar. Qual é a sua?
                - Não lhe expulsei Gonzo, apenas estou preocupado porque você está ébrio.
            Olhou-me com desagrado, seu rosto parecia o lado escuro da lua.
            - Escute, fique. Quero que fique, ok? Às vezes falo demais, saem algumas besteiras. Tome seu borboun e fique à vontade antes que eu fale mais asneiras.
            Gonzo ergueu-se sem deixar de fitar-me. Nossos rostos estavam a centímetros de distancia. A visão não era boa, com ou sem luz. Aquele maldito silêncio iria me matar. Precisava fazer algo.
            - Vamos entrar, ficaremos ensopados aqui.
                - Já estamos ensopados, Kurt.
            Fazia sentido.
            - Escute Gonzo, lá dentro está confortável e, principalmente, seco. Eu sei que você está passando por uma barra, sua situação é difícil, eu entendo. Quero muito que você consiga resolver seus problemas. Você é meu amigo e estou aqui para lhe ajudar, mas eu não posso fazer isso sozinho. E não posso fazer isso aqui, todo molhado. Me ajude a te ajudar. Entre Gonzo, não é te pedir demais. Você apareceu no meio da noite e eu lhe acolhi, tanto é que você está embriagado no meu quintal. Por mim você pode se entupir de borboun e apagar no lugar da casa que desejar. Quando te neguei algo? Eu te compreendo Gonzo, conheço sua dor. Conheço demais a sua dor, amigo, mas por gentileza, vamos entrar. A dor que se sente aqui se sente em qualquer lugar.
            Deu mais um trago, olhou-me como se procurasse enxergar minhas vísceras. Ofereceu-me novamente o borboun, outra vez rejeitei.
            - Acho que vou explodir Kurt!
                - Estoure lá dentro, seco. Por Cristo Gonzo, se resolva!
                - Entre. Deixe-me. Posso ficar aqui.
            Olhou-me com o mesmo desagrado de antes. Seus rosto tremia.
            - Vá!
                - Não posso, você sabe. Se resolva.
            Gonzo suspirou fortemente. Estava mal. Fazia sentido. O que não fazia sentido era a arma na outra mão.
            - Por que está usando esta arma Gonzo?
            Gonzo adorava me presentear com o silêncio quando este não era cabível.
            - Qual loucura você está arquitetando amigo?
                - Seria incapaz de cometer uma loucura.
                - Uma ova que é! Te conheço desde que éramos crianças. É capaz sim. Responda-me o que está fazendo, me dê a arma ou atire em mim.
                - Não vou atirar em você.
                - E quem é o seu alvo?
                - Por que acha que quero matar alguém?
                - Porque você não sai por aí desfilando com um revolver. Você tem bons punhos Gonzo, nunca gostou de armas. E sei que não porta esta arma para arrancar a vida alheia, por isso estou aqui. Por isso você está aqui. Não quero que use este revolver, principalmente no meu jardim. Vamos entrar, se sentirá melhor.
                - Nada me faria sentir melhor. Acredito que tomo seu tempo permanecendo aqui. Você sempre foi um bom amigo Kurt, nunca me deixou na mão. Não posso e não vou negar. Vim perturbar o seu sono na madrugada e você está aqui. Devo ir, estou sendo inconveniente, percebo isso. Só quis lhe ver amigo, isso já me basta. Grato por tudo Kurt, foi muito bom.
                - Foi sim.
                - Por que Kurt? Por que as coisas são assim?
                - Eu não faço idéia Gonzo. Largue a arma.
                - Não posso. E você não pode me privar do meu descanso. Qual o pecado em morrer? Não posso lhe dar a arma, a menos que você atire em mim. Vim apenas te visitar amigo, eu perdi todas as minhas vontades. Não me peça para continuar esta farsa. Estou morto antes mesmo de falecer. Apenas bebo e choro. Não sou de aço Kurt, quero acabar logo com tudo.
                - Percebe a loucura que está dizendo Gonzo?
                - Me deixe em paz Kurt, você não entende.
                - Entendo o suficiente para saber que é um erro. Nada vai se consertar assim.
                - Não tenciono consertar nada, tudo que eu toco se despedaça, quebra. É Justamente o oposto Kurt, eu que não tenho conserto. Eu já fiz barbaridades que lhe arrepiariam os bigodes. Devo e preciso pagar.
                - Pode consertá-las Gonzo...
                - Uma ova! – Gritou com seu costumeiro hálito etílico.
            Tomou mais uma dose de borboun. Tinha o semblante cansado, apagado. Conservava-se em pé apenas porque possuía uma alma, ou talvez a bebida lhe tivesse feito algum mal. Não era um homem naquele momento. O olhar distante, a voz demasiadamente rouca. Definitivamente não era um homem. Era evidente seu sofrimento. Eu só podia me compadecer, aquilo me deixava triste também. A condição daquele homem era repulsiva. Ainda assim era meu amigo, abandoná-lo como estava me tornaria um paria. Eu devia tentar ajudar, mesmo que não pudesse.
            - Isso não está certo!
E não podia. Quando o leão perde a juba não há nada que se fazer, é necessário deixa-la crescer. Aquele leão perdera sua juba, aquele homem perdera sua virilidade. Eu o admirava, mas agora era ele quem precisava de mim. Jamais me diria, mas era óbvio. Chegou ao fim, não havia como descer mais. Rei sem coroa, leão sem juba. Pensei que iria chorar. Não o censuraria. Estava cansado, acabado. Sentou e levou a mão ao rosto, o peito tremeu e a respiração acelerou. Precisava ajudar.
- Gonzo, preste atenção. Pode mudar as coisas, nem tudo está perdido...
- Uma ova! As coisas que fiz não têm conserto, só me resta esperar o Juízo Final. Por que e para quem vou viver Kurt, para que esperar mais? Por tudo que nossa amizade representa, me deixe morrer em paz!
Não esperava por aquilo. Gonzo tinha razão, sofreria mais vivendo. Pensei na nossa amizade, e em tudo que sonhamos dar para os nossos. E no que, efetivamente, pudemos dar. Eu não queria que Gonzo se fosse, queria-o perto. Queria protegê-lo, queria consertar seus problemas, dar-lhe esperanças para continuar. Queria recobrar suas forças, dar-lhe a energia que sempre deveria ter mantido. Gonzo era um herói para mim, e agora era ele quem precisava de auxilio. Meu herói estava impotente...
            - Porra!
            E chorando.
            Quando vi suas lagrimas e seu peito tremer soube o que devia fazer.
            - Gonzo, dê-me a arma.
            Nossas almas se cruzaram no espaço através de nossas íris. Estiquei a mão para apanhar o revolver. Um misto de varias sensações percorreu o meu corpo, e acredito que o de Gonzo também. Traduzíamos um ao outro pelo olhar. Ambos cheios de lágrimas. Toquei seu ombro com a outra mão, seus músculos denunciavam seu cansaço. Deu outro trago, mais longo do que os outros. Não sei se ficamos assim por segundos ou pela eternidade, encarando-nos, examinando as cicatrizes de batalha que nossos espíritos haviam adquirido com o tempo. Bons tempos. A mão permanecia estendida. Outro trago, fim da garrafa.
            - Você sempre foi um bom amigo. Não era pra ser assim.
                - Não, não era Gonzo.
            Entregou-me o revolver, estava entupido de balas. Fazia um barulho dos diabos. A chuva não parava de cair. As lagrimas também não.
            - Obrigado Kurt. Foi tudo muito bom.
            Sorri para ele.    Sorriu para mim.
            - Eu te amo Kurt. Adeus. Queria que fosse diferente. Eu te amo.
            Meu herói sorria outra vez.
            - Eu também te amo, caro amigo. Você ficará a salvo.
            Uma detonação.
            A lua outra vez revelava sua face. Larguei a arma enquanto escutava a garrafa de borboun se perder no meio da grama e da chuva. Havia lagrimas e sangue em minha face. Tudo permanecia lá. Fiquei parado olhando sabe-se lá para onde, procurando sabe-se lá o que. Só havia o vazio, e a chuva. Chorei baixinho, embora quisesse gritar. Meu herói estava salvo, merecia seu prêmio. Mesmo assim chorei, só havia sorriso no rosto dele, não no meu. Meus corpo e mente ficaram inertes. Teria me desligado completamente da realidade se o telefone que estava no meu bolso não tivesse tocado.
            Era Santa. Atendi.
            - Kurt, tudo bem?
            Silêncio.
            - Kurt, meu amigo, houve algo? Você está bem?
                - Não. – A voz saiu rouca e tremida.
                - O que houve?
                - Gonzo...
                - O que houve com ele?
                - Esteve aqui. Estava armado. Queria morrer. Bebeu e chorou no meu quintal. O que eu podia fazer Santa? Diga-me pelo amor de Cristo!
                - Gonzo? Armado? Meu Deus Kurt, você esta ferido?
                - Não.
                - E Gonzo? – A ausência de respostas punha fim à questão. – Meu Deus Kurt, o que houve com Gonzo?
                - Ele era meu herói Santa, você entende?
                - O que houve com ele Kurt?
                - Ele está salvo. – Desliguei o telefone, retirei a bateria. Assim como antes não havia nada a se dizer. Nada mudaria. Precisava partir, ir para Paraíba. Precisava encontrar Santa e os outros. Precisava cumprir uma promessa. Saí do jardim sem olhar para Gonzo, seria como dar adeus a uma estátua. Limpei o sangue do rosto e me despedi do ambiente, e de Gonzo. Sem querer chorei.
            Chovia como o diabo lá fora.